Folclore miguelalvense: “A lenda urbana do Nonato Baca”

 MEMÓRIAS DE HISTÓRIAS DO PASSADO DE  MIGUEL ALVES.

        Caricatura da figura lendária miguelalvense NONATO BACA

     Hoje pela manhã  veio-me aquela vontade de passar uns quinze ou vinte minutos sozinho, trancado no escritório repetindo, o ritual, um velho hábito de reflexão. Nesses instantes veem-me vários pensamentos e afloram fatos do passado sobrepostos na memória já castigada dessas minhas 4.6 décadas de existência. Recordo-me de momentos inacreditáveis, mas vou poupá-los de detalhes e delongas.

    O fato que hoje, nesse prazer de relembrar, vieram-me vários nomes e ocasiões, mas um deles me tocou: a memória do NONATO BACA. Sei que muita gente nem mesmo sabe que ele existiu, mas existiu sim, e está vivo no meu e no imaginário de miguelalvenses da minha geração e de gerações anteriores;
Na verdade, quando menino eu não sabia de fato a origem, a família do NONATO BACA, e continuando com a verdade estou sem saber e sem dar valor real a esse fato; pois a mim, importa mesmo, a pessoa do NONATO BACA, a memória que dele tenho e a saudade (controversa acreditem), pois o NONATO era para mim dos cinco aos oito anos “o monstro da praça”.

    Formato do Coreto na Praça José Rêgo nos anos de 1963 a 1989.

    Curiosidade: Havia um televisor debaixo da laje do coreto(foto da época).
Vou explicar:
    NONATO BACA  era o vigia da PRAÇA JOSE RÊGO, no centro de Miguel Alves, aquela praça do coreto central (CASTELINHO) que todos nós conhecemos, e já subimos em sua escadaria ate a laje; pois bem, ele era o vigia; (pavoroso para mim), pois amigos vejam que o NONATO BACA era um sujeito magro, de média estatura, de cabelos brancos, que além de caolho “o cabra” tinha seus olhos esbugalhados derrocados para frente combinando com os dentes ausentes, combinando também com os não aproveitáveis, além de um nariz saliente, no dobro do Luciano Huck; NONATO BACA tinha um caminhado descompassado, declivado ora para a direita,  ora para a esquerda e em determinados momentos de sua caminhada parecia que ia cair, mas era só impressão pois ele corria, embora que desnivelado. Ele era escuro, falava com rouquidão, como se a voz fosse gerada ali mesmo entre a língua e o céu da boca e o resto do sistema vocal nada fosse usado. Mas o melhor que recordo não era isto; agora somem tudo e acrescentem em sua mão esquerda um chiqueirador (chicote de couro de umbigo de boi) comprido e seco, em formato de espiral, fino e capaz de causar dor ao extremo, (…) ah meu DEUS, quantos cachorros (perdoem-me o termo) “se urinavam”, quantos bois caiam, quantos berros de porcos se ouvia, diante das chiqueiradas do NONATO BACA; resumindo: imaginem o humor (o mau humor) do Gargamel e o pavio curto do GONZAGA MARINHO. junte-se a tudo isto sua impaciência e o horror a meninos levados, o resultado era o NONATO BACA (usando expressão do Imortal e saudoso JOSE FORTES), POIS BOM; tem mais;
    Para mim aos meios cinco ou seis anos NONATO BACA era a figura do medo, pois dormia ao relento em fidelidade ao trabalho e ao Mestre Jesus (Prefeito e Patrão). Nonato era uma figura misteriosa que tirava meu sono.

    Registro fotográfico da escadaria do CORETO da Praça José Rêgo
Meu pai (contador GONZALÊZ), cujo trabalho  ESCRITÓRIO) era exatamente neste dito coreto público, trabalhava em três expedientes MANHÂ, TARDE e NOITE, nesse terceiro expediente que “morava” o perigo, a presença lendária do NONATO BACA; Enquanto meu pai fiava-se nos papéis e cálculos e  eu me aventurava a brincar juntamente com OUTROS meninos, na Praça José Rêgo.

    Ficávamos a ouvir dos mais velhos as estórias sobre a praça, estórias essas recheadas de assombrações; seja da MÃE DAGUA (PARA ALGUNS UMA SEREIA) que ficava na piscina no centro da praça ou dos monstros e lendas urbanas da cidade; eu sempre com um olho e um ouvido na conversa e outro no NONATO BACA que de longe fingia dormir debaixo da laje do coreto; pois saibam que ele só suportava nossa presença ate as 10horas ate porque naquele tempo 10 da noite era tarde e televisão somente aquela pública na praça e em algumas casas, talvez cinco ou seis em toda cidade;

    Registro fotográfico da laje do Coreto (CASTELINHO)

     Quando fui crescendo (desculpem-me: ficando mais velho), passei a estudar a figura do NONATO, sim porque eu fui vencendo o medo e me aproximando dele “não mais que três metros” depois dois e até que apertei sua mão… E nas noites que acompanhava o DILEZ até o escritório eu já beirando nove anos, tirava um momento para partilhar com NONATO BACA uma conversinha amigável, ele passava duas ou três horas me observando nos cálculos da contabilidade e não perguntava nada, não sabia o que perguntar, mas reclamava e eu jamais consegui saber o quê, não entendia sua voz, porque era gerada no céu da boca, não sabia de sua história nem dos seus desejos, tampouco dos medos e aflições, mas sei que ele dormia debaixo da laje e depois eu soube que era por vontade própria, pois tinha (bons) irmã e irmão na cidade, mas escolhera a praça, o frio, o correr contra os bois, o “chiqueirar” contra os porcos, o “rosnar” contra os bichos e o esbravejar contra os meninos, era isso…

Sob Laje

    Parecia que ele antevia essa tendência de as pessoas quererem viver na solidão, no seu canto, “no seu quadrado” teria sido o NONATO BACA um visionário? Não… Não (…) ele foi um amigo, um servidor público, como tantos que se apegam à única coisa, o trabalho… E vivem numa ilha de si mesmo (…).
O tempo foi passando, também as pessoas daquela época, o NONATO BACA se foi para o céu, para o além, depois meu Pai, o Gragióla, Almir Medeiros, mestre Jesus, Zé Ribeiro, Miguel Borges, Pedro de Sales, Tio José Antônio (CONSTRUTOR DA PRAÇA), Padrinho Helvidio, João Chicão, e muitos outros… Ah como me lembro de ouvir o NONATO BACA sentado no banco da Praça numa conversa fluente com o João Chicão, com o Curica e muitos outros vigias a discutir política, dinheiro, assombrações (essa era minha preferida). (.) Ah como eu gostava de ouvir aquele silêncio que saia de sua boca, do NONATO BACA parecia falar varias línguas, que eu não conhecia, mas seus pares sim entendiam tudo, lhes permitiam “a parte”, Nonato Baca parecia discursar entre os amigos, explicando tudo sem uma só palavra inteligível, aqui e ali uns “gargarejados” pareciam um “sim” às vezes um “não” talvez a conversa leiga fosse mais rica que o acalorado discurso dos excelentíssimos senhores vereadores…

Foto: Richarle Tuira

    Depois do sufrágio do NONATO BACA e não vou dar detalhes, data etc de como ele partiu, até porque de que valem? Até porque eu soube um ou dois anos após. Sim, porque os velhos e pobres morrem sempre no ano passado (…).
Quando vou à Praça, e vou todos os dias, vez por outra olho para baixo da laje do coreto e como num holograma gerado pela memória, pelas lembranças, vejo o NONATO BACA, sentado, quieto, fingindo dormir, não sei se bêbado ou sóbrio, bem a seu lado o chiqueirador, sobre sua cabeça o chapéu entre cobrindo a testa e os olhos, tal como o vira na minha infância (…) vem àquela saudade, na lembrança ouço sua voz “celeste”; (sim porque era gerada no Céu da boca), seu roncar, e vejo os animais correndo, porcos, bois, jumentos, bodes (…), de repente ele levanta-se e corre ao encontro deles e grita e bate com o chiqueirador, corre cambaleando, insultando os meninos (…) e volta a seu canto, e encolhe-se (…) o celular toca… (trim. trim… trim…) e eu acordo as três da manhã diante de um computador com essa historia escrita (…) mas dentro de mim bate o medo e saio fechando portas, correndo ate o carro e pareço ainda ouvir meu AMIGO NONATO BACA a resmungar: menino danado vai dizer pro DILÊZ...

Praça José Rêgo

(SAUDADES NONATO BACA)
Frederico Rebelo, 07/ 2018 – Escritor

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